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35. Constelação castanha

Caminhos da roça

Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Tudo o que existe, existe em Deus. Essência é potência. Deus é a potência absolutamente infinita. Com Deus, tudo é permitido [Benedictus de Spinoza]. Ele é fundo imanente por meio do qual as estruturas transcendentes se estabelecem em graus, gradientes e gradações. Ele é o horizonte celeste que é atravessado por um por do sol. A folha em branco onde se escrevem as histórias. As diferentes pressões que, confrontadas ou decompostas, ressoam como o vento. Elas são o vento. Ventanias que, de súbito, memoram situações. 

Não sei bem que dia era aquele. Dentro do ônibus, indo para a faculdade. Meio vazio, igual ao coração. Ziguezagueava pelas ruas mal iluminadas da Nova Brasília. No fone de ouvido, uma canção que entrecortava o peito. Planet Caravan [Black Sabbath]. Com vontade de me matar. Não de tristeza. Ninguém se mata de tristeza. As pessoas já estão mortas por dentro quando decidem antecipar a única certeza que se tem na vida. Quando cheguei lá, sentei no fundo da sala. Você sentou perto de mim e começou a conversar. Você brilhava de encantamento por estar ali, por estar compartilhando a experiência de se formar, de buscar um futuro melhor. O vídeo do garoto em cima da porteira: abria e fechava. Você dizia tanto sem sequer dizer. E tudo, a seu tempo, mudou. Não sei se você sentiu ou se estava ali por intervenção divina. 

É ainda nítida aquela noite. Eu e você no corredor que levava ao grêmio estudantil. Na penumbra da quadra, seus olhos brilhavam por trás da chama do cigarro aceso. Quando fico ansioso. Raciocínio afoito, unhas roídas, pequenos espasmos averbados por mãos inquietas, ainda que sentado, sua perna em movimento. Sentia cada angústia dentro de ti. Há angústias que se carregam sozinhas, outras que se têm de carregar. Cada um sabe o peso de sua cangalha. Você era tão cheio de sonhos e eu tão vazio deles. Gostava de te ajudar a construir cada um deles. Bem no fundo, extremos que se compensavam. E se uniam. Uma aliança que trago no peito até hoje. Sinto muito a sua falta, R. Distante daquilo que eu era, sem força, nem fé ou poesia [Palavrantiga]. Você foi meu melhor amigo. Cada momento do seu lado, das lições bíblicas aos desviamentos de quem cresce aprisionado pela escolha dos pais. São memórias que doem no peito. E tem sido assim desde quando te vi pela última vez. 

Por que pessoas legais escolhem pessoas erradas para namorar? Nós aceitamos o amor que achamos merecer. A conversa com os monitorandos e os avisos sobre relacionamentos. Os melhores companheiros durante toda a faculdade. Até nisso devo a ti. Deveria ter escutado. Você me pediu desculpas quando quem deveria pedir desculpas seria eu. Vez ou outra, vejo o seu perfil e de sua esposa. Americano e pai, agora. Queria poder te desejar parabéns pela família linda que você construiu, mas faz um tempo que escolhi me afastar de ti. Escolhas erradas. Espero que esteja tudo bem contigo. Terminei de assistir àquela antologia de terror do Guillermo del Toro. Em um dos episódios, ele aprofundou o fenômeno do flocking behavior [comportamento de flocagem] de um jeito incrível. Ele remete a tanto arquivo mental, em especial, a última música do álbum do Coldplay que lançou em 2014 (dois mil e catorze), lembra? É sobre finais, nem sempre felizes, nem sempre com explicações, mas que marcam as nossas vidas. Que Deus te guie em cada um de teus voos.

A caneta da morte, 
A tinta da vida.
O papel do destino, 
A letra da ação.
O poema de felicidade, 
A rima da tristeza
Da canção antagônica; 
Destreza, destreza

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