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1. Estranho


Ultrapassei a idade de pretensões tolas. Nem sei se idade seja o mensurador correto para qualquer coisa nessa vida. De acordo com a física, o tempo sequer existe – a única coisa que existe é a diferença entre dois pontos: distância. Todas as derivas são dela interpretações. Tracejar contornos, definir limites: satisfação dessa mania de controle, alicerces de um mundo incerto. Devires artistas. Fiz vinte e três esse ano e as projeções feitas para quando tivesse essa idade parecem tão distantes, tão pueris e tão ridículas. “Sair de casa, viver a vida, morar só, apossar-me de mim”. Faz tanto tempo que não sei o que é contar com o futuro, com algo certo, mesmo que por um sonho, mesmo que por um segundo, tudo é tão volátil. Na velocidade em que se mostra, qualquer filete de esperança logo se esvai – chuva desfeita no chão, talvez regue alguma semente já oca, uma daninha entre as rachaduras de alguma calçada. Aprendi cedo a não contar com ninguém. Ninguém está realmente interessado no que você tem a oferecer, as pessoas estão presas dentro de universos particulares, embebedando-se de pequenas lufadas que, aspirantes a poetas, respiram entre pressões diferentes. Encontram no acaso o gracejo de uma repetição, uma ventania que rima sem realmente dizer acerca de suas origens. Por vezes, a luz é borrada, um tremeluzir de recantos entre os silêncios de um dia barulhento, um zumbido irritante que impregna a existência e arranha qualquer gotícula de paciência. Ressentimentos são frasquinhos ácidos. Quando quebram, além de cortar, inutilizam as entranhas de tudo ao redor. Uma fumaça tóxica alevantada, impedindo tudo o que é vivo de florescer. Tem algo que me incomoda, mas não consigo nomeá-lo. A habilidade de Bastian em preencher o vazio de Fantasia com nomes me encanta. Em verdade, a infindável história sempre me encantará. Gosto de escrever. Parece que em meio do caos que escorre entre os dedos, enervados, ali, algo flui para longe. O desague da ansiedade ou de um vazio em um punhado de palavras que, enquanto grãos de areia numa ampulheta, você espera para ver cair e, finda, invertida para se esvair de novo, e de novo, e de novo. Desconhecido se é a mente que desliga ou seu corpo que requer um espaço, um espaço-tempo, uma fenda para sumir. As inquietações improdutivas, o descontrole clássico de uma mente dispersa, em dispersão, ecoando pelo universo – dissipando notas em cada canto de um infinito, o retorno de vias outras, vias algumas, vias todas, vias nenhumas. Os portais de castelos construídos no celeste de uma noite. Uma vida encarada sobriamente, sem névoas afastadas pela realidade que tentam falsear, do sol inevitável que tentam esconder. Adepto ferrenho da fórmula milleriana: “embebedar com água pura, viajar sem sair do lugar”. Revirei tanto a ampulheta e cheguei a lugar nenhum. Ou talvez tenha chegado, apenas desapercebido. A fumaça dos grandes acontecimentos escondem faceiras o ardil de nada conterem – uma poeira que impregna tudo com espirros e adoecimentos. Anuncia, por outro lado, aos apreciadores de entrelinhas, os esconderijos moleculares, os subterrâneos onde as trocas se estabelecem e os agenciamentos se perfazem. Equilíbrio interno para menear o rosto por sinais de fogo. Em dimensões paralelas, você gravita sem qualquer custo, perguntando de quando em quando “o que é isso?”. Amo usar travessões, eles pontuam dramaticamente uma explicação desconexa, aliam lugares eternamente separados em uma pós-escrituração. Assemelhados a trampolins, algo dali se atira, ou a linhas paralelas que, apropriadas de um infinito, nalgum lugar se tocam. Pensamentos amantes e os desvios dos errantes. Uma intenção recorrente de ensacar minha vida e a vender como adubo. Não que ela seja ruim. Quando o caminho é de pedras, a simplicidade é um prêmio, um agradecimento. Quem desconhece o proveito das vacas magras, não entende a bonança das vacas gordas, nem dos ensinamentos proféticos... Voltando das reminiscências usuais e sorrateiras – víboras de uma mente conturbada, não que ela seja ruim, mas é um pouco confusa. É como essa escrita, ela é cognoscível, mas não é tocável. Ela semeia, mas não é pronunciável. Ela desenha, mas não é ilustrável. Ela rima, mas quando é para rimar, ela se aparta, desesperada com os sinônimos em reiteração. Ela é estranho, estrangeiro. Em saudação ao grandioso, ela é “alheio”. Transita por lugares sem datações, transcreve por signos e sinais um cometa de galáxias pares, já desinteressada em gêneros, concorda com tudo aquilo que lhe soa confuso e ainda sim poético, musical e que de tão costumeiro se tornou “ímpar”. O ascendente ariano que constantemente festeja e o sol capricorniano, obrigado, pois, a limpar e, como mãe, se pergunta onde errou na criação do filho. Os requerimentos para atirar essa bagunça em uma ribanceira, mas o calculismo rediz o brilho dessa perdição em meio a um caos próprio, único, e, não raramente, engraçado, cômico, quase tardio. Cansei de redigir esse introito. Nem sei se saberei contar esses capítulos em romano até o fecho, se o tiver, logicamente. Falo em primeira pessoa, mas a segunda se contorce para abocanhar o texto com arcadismos e o envenenar, saboreando os gritos sangrentos da modernidade – que se passa, que se é, por que se passa, por onde escorro? Quantas espirais se percorrem para chegar em algum lugar na existência? De tanto rodar, os tópicos se sobrepõem, o leitor já está zonzo. Uma pancada no crânio, nodoa o juízo e escorre quente como sangue. Ao cabo disso, similarmente, a indiferença da terceira se amontoa por imparcialidades, esterilmente, agrada a todos em sua soberba. Há inda (sim, existe, é raro, charmoso, clássico, um amor, logo, usá-lo-ei) escolhas a tomar e escolhas, sabido por ti, conduzem a história. A nossa história. O quê contas tu antecede o que conta esse livro – a cachoeira de teus olhos rebuscada na imensidão dos espaços entre cada letra, entre cada linha, uma escada entre nós dois. Uma babilônia de teus credos, caída de um balbuciar lúcido de quem admira passos esparsos, escritos levados por ondas e tragados pelo mar, mar de ti, profundo, navega por outros oceanos e, sem fim, constrói um pequeno barco para em intensidade apreciar os devaneios de um farol, de um aceno. Esse é mais um aceno que um livro.

Uma triagem, não; uma flor.
Uma viagem, não; um amor.
Que chatice da mais chata,
Essa rima cansa e está um horror.

O contorno que é ainda por dentro,
O por fora, de fora, já se perdeu.
Dos traçados de outrora, ri.
Tu se lascou, tu se releu.

Circunscrito entre os limites da dignidade que ainda lhe testa.
No peito, uma noite escura de rios turvos e densas florestas.

Aventura-te, estranho?

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