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2. Avis


Faz um tempo que não te escrevo. A vida anda tão estranha. Não sei se ela sempre foi assim ou é a gente que, com o tempo, começa a perceber certas nuances, pequenos detalhes que não estavam ali quando saímos ou pequenos detalhes que sumiram, sem que nos dessemos conta. O balançar de cabeça para alinhar as ideias – uma porrada de realidade depois de uns contornos nebulosos, linhas que tentam esconder entre cada borrar de limites uma transição, a ponte de uma música, um filete prateado de chuva – um anúncio dela. Embebedar com perspectivas dizimadas pelos cacos de algo que se quebrou há algumas eras. E há quantas estamos aqui? Ideias aéreas e meio mundo de pensamentos pássaros, debandando de um lugar a outro, sem rumo e sem nome, em grupamento ou sozinhos – já nem sabem quem são. Se é que o ser um dia se importou em se aprumar, uma identidade alevantada para dançar entre os carnavais de si. É encantador e, redobrado sobre a mesa, assustador assistir às coisas se estenderem daqui à algum canto, bifurcar nos espaços em branco que se preenchem com enigmas, esfinges outras que não as costumeiras apatias que, enquanto preces, nos abençoam desde as primeiras horas do dia. Às vezes, o peito da gente parece um grande corredor escuro, repleto de abismos para que os que ali se aventurarem, morram, inclusive o construtor. Portas sem fim, portas nenhumas, chaves jogadas ao chão, atiradas em algum lugar, quebradas de uso. Em uma delas, escondida num frio longínquo, uma constelação que, apesar de tudo, insiste em brilhar. Fagulhas de épocas em que “a saudade de se sentir bem contigo” não apertava tanto. Em verdade, quando isso ainda fazia diferença. E existe diferença entre antes e depois ou é só a gente estagnado bem no meio, meio lá, meio cá, transitando a procura de nomes que desenhem um significado ou um “sentido”? Cada angústia florindo em tentativas de continuar. Trevas entaladas, uma corda enrolada no pescoço, um poema preso na garganta, uma vontade de urrar, sufocada pela devastação de se perder. E é tão bom se perder. É tão bom rimar com o caos que habita em cada contradição nossa. Refazer dos despencares um impulso e se regojizar de todos eles, colocar o Nietzsche para malhar, fazer ele se alegrar com um novo whey. Gotejar em cada ausência uma oportunidade de estabelecer um ponto, riscar nele um horizonte e atirá-lo rumo a um infinito qualquer, “atravessar as eras” com aquela flecha que, anônima, adveio de todos os lugares e também de lugar algum. Tem algo que se firma quando coloco os pés descalços no chão, assim como algo que voa quando alinho as costas na parede e fecho os olhos. Entre os barulhos da gente, um silêncio tranquilo – um sorriso de acordes e uns acordes de sorrisos. Paz de caos. É engraçado brincar com dicotomias, tudo ou nada, sim ou não, vencer ou ganhar. Apropriações esquecidas do poder de silêncios, uma vida justificada pela linguagem e liberta na imensidão de ser por metades, ser incompleto, ser de ambos de si, “um bastardo, sem nome, sem lugar” e por isso mesmo um rei, um sol, um céu. Queria dizer que estou com saudades, mas saudades se fazem por voltas, voltas entre os espaços criados para o plantio. E, eles dizem, “é necessário que a semente morra para que dê muito fruto”. O jeito é aprender com Brás Cubas – escárnio de tudo para, com tudo, tornar-se leve, tornar-se flor. Gosto de flores, “flores do mal”, mas também gosto de flores do bem e, no fundo de ti, nessa escuridão que por vezes consome o peito, há também cálidos luzires, luzires estrelas que, na confusão de si, atravessaram essa noite em um amanhecer, um amanhecer de paz e tranquilidade, um amanhecer de ti. Espero sempre que você saiba – apropriado dos ensinamentos potterianos, principalmente a cena do lago – que mesmo nas trevas e na solidão de todos, ainda pode haver esperança. E mesmo que não tenha, se cria... Um devir artista, artesão de si. Seja para guardar, seja para assombrar, seja para dela sorrir. Eu te amo, H. Sou apaixonado por cada detalhe caótico de ti. Fique bem!

Ps.: você é a primeira pessoa para quem estou mostrando o “introito” de um livro que comecei a escrever. O capítulo dois é para ti, ou o livro todo, se for parar para refletir e problematizar, ele é confuso, por isso gosto, assim como gosto de ti.

Pss.: aqui em casa, uma chuva dizimou a resma de papéis azuis. Essa carta será impressa, mas é claro que sem prejuízo de transcrições posteriores no sistema de praxe quando encontrar chamequinhos bem gays novamente haha.

Psss.: não sei se é possível escrever tantas pós-escriturações em uma carta, ainda mais quando o arquivo é editável. Gostaria, porém, de dizer que comprei birimbelinhos de biscuit em uma banquinha de um evento. Eram os últimos, mas achei eles tão engraçados. Comprei um unicórnio, um Harry acompanhado de Edwiges e um Rony acompanhado do Rabicho. O primeiro é para a R., ela consegue aturar minhas lamúrias todos os dias, ela é um limão com os outros, mas é meio doce comigo e não sei o porquê, mas se fosse uma pessoa mentalmente equilibrada, casaria com ela – ela é fantasiosa e triste, mas de um jeito meio real e possível. Gosto disso. O segundo é para o D. Fiquei tão dividido entre vocês dois, com qual presentear. Amo vocês dois de um jeito igual e ao mesmo tempo diferente. Encomendei outros, mas ainda demorarão para ficarem prontos por causa da artesã que estava doente e do processo de secagem deles. Decidi, então, interpretar o acaso da ocasião. Gótico que sou, estava em uma viagem transcendental aérea e meio perdido em mim quando sai de casa só e sem destino quando, passando pelo shopping, vi o evento e a banquinha. Na hora que avistei, pensei em vocês três, as únicas pessoas nessa vida que chamo de amigos. Recebi tantos avisos de vocês – alguns expressos, outros silenciosos – e, ao invés de acolhê-los enquanto faróis, afastei-me em direção a um mar que, sabido, precipitava em densa tempestade. Desculpas não faltariam ao afundar do barco que, envergonhado de si, tentou juntar seus pedaços e aportar noutras encostas. “Errou feio, errou rude”, errou miseravelmente, como tudo nessa vida. Há pessoas que têm toques de Midas, tudo se transforma em ouro; outras, aqui incluso o subscritor, toques de abismos, tudo se abre por fendas, destroça – fissuras no coração, na confiança. De barco a jangada, abraçou suas escolhas e, apesar de ainda envergonhado, resolveu untar cacos e fazer um kintsugi. Dizem que os helenos eram fanáticos pela beleza porque ela representava um equilíbrio que não existe no caos do mundo. Era encantador exatamente por ser irreal. E a arte tem um pouco disso, né? Enunciar pedaços do universo que criamos e untar com o dos outros, em um passeio por uma ordenação de perspectivas. Refazer com o toque de vocês dois e os presentear com pequenos gracejos. Escolhi o Rony para ti por isso. Mesmo que o Harry seja o principal – com quem todos se identificam, o Rony é o engraçado, aquele que em sua sutileza encantou a Hermione, minha personagem favorita. Pelo Rony e mesmo à distância, os feitiços de proteção, as ajudas silenciosas, os sorrisos sinceros... A cena linda dos pássaros amarelos revoando sobre a cabeça, acolhendo cada pensamento como uma reminiscência, como um abraço – como eu no dia do evento. Digo isso porque a vida nos presenteia não com o que queremos, mas com aquilo que nos falta, uma espécie de equilíbrio, de compensação – é a sua beleza, uma beleza helenística. Tornar tudo leve e, de igual maneira, tudo possível. E, na vida, os melhores presentes se escondem entre os silêncios, entre os abismos, entre os detalhes. O Harry é signo de geral preferência; o Rony, de aposição. Uma questão de diferença; a outra, de repetição... Para ti, escolhi o gracejo de um “R”, “R” de resiliência e também de Ricardão. HAHA (risada Nelson dos Simpsons porque foi doentio e triste, mas e o que na vida não é um pouco dos dois, né? E isso é maravilhoso!). Juro que não usei drogas para escrever. É só vontade de que, naquelas horas loucas e tristes, você saiba que sempre estarei contigo. Pássaros amarelos.

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