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8. Porta a frente


"Às vezes no terraço fica a minha espera um enorme crocodilo de boca aberta. Ele toma sol a minhas custas. Gira seu reptiliano corpo com barriga p'ra cima enquanto sorri p'ra mim. Às vezes ele atravessa a sala enquanto todos estamos no sofá, arrastando sua lamacenta cauda à espreita do primeiro deslize em frente a geladeira. Um enorme crocodilo ressona ao lado da minha cama enquanto durmo. Me prepara o café da manhã aos domingos. Paga as minhas contas com meu dinheiro. Um enorme crocodilo com dentes a mostra. Me diz sempre o que fazer sem que eu possa contestar. Desde sempre, um enorme crocodilo me seque e afunda a me observar onde estou, somente os seus olhos. Os seus olhos somente, aonde quer que eu vá. Me perseguem com obsessão tirânica. Um dia simplesmente permiti que ele partisse, não sem antes levar consigo, em troca, um imenso pedaço meu" - G. David.

História que transita entre mundos, depurar o que é desapercebido em um ou no outro. Advir de comum centro, de uma tensão comum. Círculos em volta de algo retomado do meio, um jeito meio hipnótico de se perder em mesmo lugar. Reminiscências. A razão de diferenciamento é, de toda sorte, da normalidade. Conversão por um distanciamento de si, do outro. Reformulação em contornos do saturado. Afastamento de galáxias na exata proporção de suas distâncias. Tudo tende à expansão, a se superar, quebrantar e mover. O universo finito no tempo. Nele, subjetividade, “pois corpo é experimentar o tempo”. Ainda que infinito no tempo, o tempo de retorno é inferior ao de passagem. Tempo de luz do ocaso. Constância de um horizonte, a dissociação de um contorno. O intenso é meio. Parentalidade completa ao ensinar a lidar com frustrações. O acaso de apartação a redizer o universo. Remordere é anosa dívida. Desenho de prudência entre projeções. O amor de orvalho, leve em chuva, enunciação do indizível. A leveza é o último grau de elevação do humano. Não é por ser o último degrau, mas por ser o primeiro. Se nasce simples, a vida é que chacoalha para ensinar a nadar, a caminhar, a apreciar o movimento. Fardos que se apartam a cada abalo. O sabor de uma linha, o gosto de uma direção. O belo é equilíbrio, pura compensação. Nascedouro de um outro dia. Pequenas singelezas que se tensionam e materializam o relâmpago. O céu torcido em um trovão. Certos poemas apanham contos. E o universo pega coisas no ar. Ouvido certa vez que o tempo não existe. A aula era sobre velocidade. Dizia o professor que, na verdade, entre as variáveis dela integrantes existe apenas a distância, a medição do espaço entre dois pontos. O tempo é uma deriva, um gracejo que potencializa a contagem, uma forma de preencher os vacúolos de solidão ou mensurar, sem realmente dizer, as afetações no meio do caminho. O vaivém das linhas que, distorcidas e agenciadas, tensionam um corpo. É um peso existir. Perceber o ponto traçado entre os primeiros dias e a incerteza dos finais, o que vem adiante, o afeto doloroso de saber que os signos se projetam antes e, depois, continuarão a se projetar. Fórmula da ansiedade. Oceanos retraídos na esperança de se devastar no retorno, a recessão de um punhado de estrelas. Na insegurança do mundo, abocanhar pequenos ajustes, remoer, sugerir, digerir, absolver, repelir... Remorder. Sucessão de atos assanhados. Criar, revisar e pontuar. Demarcação da passagem. 

De outras metáforas, os crocodilos do cotidiano. E crocodilo é tão metafórico. A história que "[s]e completa do lado de fora, se fecha sobre si mesma no vazio de um puro nada. O arco da ponte quebrada, ou começada, desenha virtualmente a curvatura que lhe falta". Quando éramos em vez. Vez em quando éramos. Éramos quando em vez. Em vez éramos quando. Uma sonoridade recitada toda vez que se atira à beira de um infinito. E ele flutua pelo ar. Películas integradas pela cinemática de um conjunto de luzes, fotografias do agora, adivinhar o futuro. Uma hipótese, um devaneio. Olhar para trás, em epifania, os destinos de uma linha, um olhar esquálido para o incerto. A cigana vestida em roxo. A profunda devastação de uma noite. Ela se veste de noite. Esquecer ou ser esquecida. Por quem para trás olhou e viu estátuas, sal e pó. Atirar um coquetel motolov daqui até a onde a eternidade se estende. Horizonte sem horários em cotejamento por outros lugares, explodir uma estrela e parir luz. Vestir de escuridão e incerteza, renascer em cada passo um sol e um dia. Desarrazoados entre trajetos sem rumo do barco de Osíris. Remar por entre águas turvas, turvadas para falsear profundezas. O desfiladeiro do mundo. Águas que mudam como mudamos a nós mesmos. Às costas, um crocodilo de boca aberta; à frente, um infinito e um delírio. Irrealidades que se assenhoram do agora. Força de um vacúolo que graceja ao sublimar, portas que se fecham para pressionar som em outras, saltar de outras janelas. Dedilhar cada um dos esbarroamentos em contratempo, um caminho de tijolos amarelos. Mudar de rota e se encontrar em outros termos. Quando se ouve uma música e por algum motivo os caminhos fossem outros, mesmo que de certo modo ainda corram em paralelo. Carregar em si a essência do tempo, de um outro tempo, um tempo que sequer existe. Deslocamento desse mundo, infinitos que estão em outras eras, eras adiante. As estrelas no céu, marcos da passagem entre os dias de ti. Notas a serem dedilhadas. É por isso que, sobre elas, "nunca se escreve". Um manicômio disfuncional. Nenhum detalhe escapa. Um vórtex aberto no meio do caminho e tudo se perde em outras entornações. O caos empurra enquanto a passagem é invertida, inventada. Ficções para se equilibrar. As palavras e o tempo. Abalos provocados por uma confusão de sentimentos ou, nalgum ponto, a ausência deles. No fim, um riso que se ri. Arvorar bandeira desconhecida. Antes dormia sob um céu de estrelas. Agora, elas se avizinham como casas. É, quase casa. Casa precisa de gente, de terra e de outros, ainda que para dizer que sua. Aqui, um deslize e se cai na imensidão de algum infinito. Um infinito que não se pode chamar de seu. É de outros. Vem de fora, é o fora, de outras eras. Final em transição. Transição de sinais, como os da esquina que costumava morar. Indo e vindo, viam, mas, de regra, preferiam por ignorar. Tingiam de lua e noite. Noite adensada que um dia se levou. Palidez surda de memórias distantes. Músculos retraídos. Inanição, paralisia. Coração deserto. Secou como planta em quarto escuro. Um a um, sonhos dissipados. Corda invisível amoldada ao pescoço em um sufoco silencioso. Suportou tudo com olhar de reminiscências. E então se calou. Era domingo de um dia qualquer e tinha um crocodilo batendo a sua porta. Ele o deixou entrar. 

"Três coisas maravilham. Quatro há que não conheço. O voo da águia pelo céu, a trilha da serpente sobre a pedra, o caminho do barco em alto-mar e aquilo que está entre o homem e uma virgem" – Provérbios 30:18-19.



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