Pular para o conteúdo principal

12. Musicalidades


“Certas pessoas podem passar horas a fio sem falar”. Em mundo de palavras desperdiçadas, silêncio é um refúgio. Conforto de esvaziar o retido em demasiado, aliviar o forçado ao extremo de seus próprios limites. De cedo, titã Atlas, ombros alargados para carregar o mundo às costas. Na épica, ombros curvados, pois, não sendo titã, às vezes se cede com o mundo às costas. Cessão sem alardes, o reerguer sozinho. Dificuldade de palavrear medos, angústias soterradas uma a uma em um espeço silêncio. Nos olhos, a tensão do ar, é tempestade. Devastação refeita em ensimesmar de tudo, circunscrito em gotejar longínquo, em um olhar longínquo. Pensamento é areia movediça, afundar dentro de si. “No que está pensando?”. Sutileza levada pela chuva, ela que se leva e se deixa levar. Caos incompreensível borra cada tracejo de identidade. Apatia do espírito, dormência emocional, a dissociação nossa de cada dia. Ancoramento em futilidades, uma pausa de tudo o que pesa, de tudo o que cansa, “eles não cansam de falar besteira”. Irresignação de ter o que se pode, o que se quer, mas, ainda assim, não se sentir bem. E isso não se diz. O futuro projetado às sombras de vida temerária, de temer silenciosamente o que pode acontecer amanhã ou quiça nunca. Quebra-cabeça sem as partes que faltam. Perdidas em alguma esquina ou receosas em ensaiar por outras entonações. A nitidez da simplicidade. Respirar antes de se atirar ao mar, de alevantar a cabeça e seguir por um novo dia. Um pouco de Gaara: consigo, deserto de proteção. Cada um dos seus demônios sepultados profundamente no peito, matar à fome e sede tudo o que vive. “Sou floresta e noite de árvores escuras, mas quem não teme minha escuridão encontra roseiras debaixo de meus ciprestes". Por fora o riso, por dentro, a blindagem. Solidão de muitos, círculos de opressão, fragilidades tangidas por incômodo, errado é dizer, consolar quem não se consola. Clausuras de cerco que se fecha sobre o fora, sufocamento por apreensão inominada, falta ar. Ameaça de versões contraditórias de si mesmo. Até que ponto se poder ir, a melhor escolha por obrigação... Tortura diária de si mesmo. Quando o mundo cai de seus próprios moldes, é requerido espaço para respirar, redimir. Abrir a ti todas as possibilidades. Tristeza, alegria, angústia, medo, plenitude, coragem, fracasso, ciúme, conquista, desânimo. Tudo integra um outro repertório, o movimento da vida que te atravessa. A musicalidade do vento ao rosto. Quando a desesperança assola, retraindo cada passo a sorte de se desconfiar, é hora de se cultivar. Cuidar dos outros é dádiva titânica, o que te faz humano, mas para poder cuidar dos outros, é necessário cuidar de ti mesmo. Saúde é se sentir bem com o que você é, com o que você pode fazer. É olhar para trás, ver o quanto já se caminhou. Quantas conquistas se tem a cada vez que se respira, a cada vez que se olha quem se ama e ali vê firmamentos de uma ponte nesse mundo incerto. Untar os fragmentos de ti com ouro e fazer peças únicas, peças de apreço: kintsugi. Pessoas que pouco falam são as que mais veem, as que mais sentem. Aprenderam cedo a abraçar a vida com todas as suas implicações. A vida é bonita não por ser perfeita, mas por dizer em silêncio que viver é precioso. E todo dia é dia de caminhar, cair e levantar. Bola fora não é de todo ruim, – é ruim sim – mas faz parte do jogo e sem ela a vida não teria emoção, ela não seria tocável. A maior parte da alegria de vencer é saber quando se perde. Como você sabe, das primeiras lições do judô: cair. E é justamente por pessoas como você, D., que a vida ganha um significado próprio. É gravidade que empurra para baixo a fim de que, com asas de pássaro, se possa pegar impulso e planar em voo. Rever o mundo por uma linha infinita que corta o horizonte, percorre os céus e atravessa as eras... Universo a encontro de outros, apagamento de realidades como os segredos escritos na areia e levados pelo mar. As palavras silenciam e pelos anos até perdem a cor. Memórias, por outro lado, acendem na escuridão. Escuridão que vez por outra tenta assomar o coração. Erguer de estrelas no peito e o abraço confortável do tempo. Tempo como marco de passagens, cartografias de si, a data de hoje. Aniversário junto do meu personagem favorito. As ranhuras do tempo porque o tempo é ciclo e “ciclo não tem um começo”, levantar e cair, estações. Princípio ético: o herói de ti é tu mesmo. Cena do lago... As vezes brinco contigo, mas é por admiração e felicidade, felicidade de ter por perto todos os dias criatura tão incrível. Você é meu melhor amigo e, de longe, a pessoa que mais me dá orgulho. Como gotas de orvalho, raridade que traz em si “filosofia da manhã” e promessa de novo dia. De verdade, se um dia eu quis ser alguém, hoje sei que este alguém seria exatamente igual a você (porém, bonito, porque aow bicho féi, doido). Feliz aniversário, Carniça!

“Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não atrela o coração com muita firmeza a nada em particular; nele existe algo de errante, que se alegra na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o seu portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do seu portão e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer a ele; mas depois virão, como recompensa, venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, bandos passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes dos espíritos que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno transfigurado: – eles buscam a filosofia da manhã” - O Andarilho.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

39. O Vulto

Lenda baleada pela segunda-feira Apossado de qualquer trocado para ir à locadora, sempre via um ou outro pôster da franquia Halloween . Ouvi toda a discografia da banda homônima - que por sinal emocionou demais na adolescência - antes de assistir aos filmes. E foi uma boa escolha. Terminei hoje à tarde os dois primeiros. No fundo, excluído o desejo homicida, eu sou o protagonista. Amo quando passo horas e horas a observar o mundo, o movimento das pessoas, o ritmo do que se leva e do que é levado. Em silêncio, diluir as inquietações pelo revés do olhar. As intensidades que colorem a mesmice da vida desembocando como cachoeira para dentro de mim. Desfocar o significado do que se vê. Apenas sentir. Ou, quem sabe, de canto a outro, imergir no que é desintegrado. No que está desintegrando. Ruínas de histórias. Um novo enredo que é levantado. O jeito com que ele apagou toda a subjetividade para, aguardando em hiatos, lançar o que restou pelas sombras. Beber da imortalidade. Anunciar a lucide

35. Constelação castanha

Caminhos da roça Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Tudo o que existe, existe em Deus. Essência é potência. Deus é a potência absolutamente infinita.  Com Deus, tudo é permitido [Benedictus de Spinoza]. Ele é fundo imanente por meio do qual as estruturas transcendentes se estabelecem em graus, gradientes e gradações. Ele é o horizonte celeste que é atravessado por um por do sol. A folha em branco onde se escrevem as histórias. As diferentes pressões que, confrontadas ou decompostas, ressoam como o vento. Elas são o vento. Ventanias que, de súbito, memoram situações.  Não sei bem que dia era aquele. Dentro do ônibus, indo para a faculdade. Meio vazio, igual ao coração. Ziguezagueava pelas ruas mal iluminadas da Nova Brasília. No fone de ouvido, uma canção que entrecortava o peito. Planet Caravan [Black Sabbath]. Com vontade de me matar. Não de tristeza. Ninguém se mata de tristeza. As pessoas já estão mortas por dentro quando decidem antecipar a única certeza que se tem na vida.

36. Encouraçado

Rio Longá em Boqueirão (PI) Esse retrato ganhou um concurso de fotografias. Está em na agenda (2023) de uma instituição pública piauiense. As paisagens bucólicas são encantadoras. Quando o cansaço da bicicleta aperta, elas revigoram a passagem entre José de Freitas (PI) e Cabeceiras (PI). A vegetação esverdeada pela chuva, as nuvens esparsas que de quando em quando encobrem o sol. Os corpos d'água que se vê pelo caminho. É raridade, é pureza. Eu amo o interior do Piauí. Há uma semana comecei o meu segundo curso técnico. Quando ingressei no instituto federal, a afeição pela matemática projetou duas opções: informática ou contabilidade. Um pela manhã; o outro à tarde. Uma exata com começo, meio e resultado; a outra humana: inconstância, projeções e perspectivas. Foram quase cinco anos enfrentando o sol do meio-dia, ouvindo a seleção de melhores músicas do Roberto Carlos nas linhas 104 (Santa Maria Shopping) ou 201 (Santa Maria Centenário). Ouvir  Amada Amante na trilha sonora de Tapa