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22. Avenida beira-mar


O amor é gracejo. Da alegria, a pura vertigem. Sublimação de essências. Destino de um punhado de palavras. As que se atiram e as que se deixam por atirar. Demônios de quem andava pelos sepulcros. Atirados à vara de porcos, lá correm ensandecidos. Abeiramento de um desfiladeiro. De um outro infinito. Ele vestiu azul. Era mar e maré. Fascínio pelo tanger de realidades. Peso e pêndulos. O amor dança com o tempo e o vence, mas é o tempo que lhe passa a mão por sobre os olhos. De eternidade, mira eras adiante. O amor é orvalho, uma deriva e uma derivação. Ouvi lá. Inesperado como ouvir a Flesh Without Blood em um episódio de Mr. Robot. De aparência, nunca se encontrariam. Unidos pelas gradações de um mesmo horizonte. Cada um deles, degraus de um momento, de um instante. A vida é fluxo irreversível. Captura estática de um humano bélico. Destroços. Não se é, se está, se faz e se constrói. A um passo do amanhã, é uma passagem, um marco e uma ponte. Orvalho é gota e também chuva. Aqui choveu. Ir ao longe, descansar do perto. Volver à casa. E ela é outra. Sempre foi outra. Ela está em outro lugar. O amor é orvalho. E isso é incrível.

O segundo nível de codificação dos signos é o do amor. De acordo com Deleuze, Proust mostra na Recherche que se apaixonar não passa de aprender a reconhecer o outro por seus signos específicos. O amor exige a dedicação do amante numa atividade intensa de decifração dos signos particulares que o ser amado produz. O amante da Recherche é, antes de tudo, um “investigador” de signos, um tradutor e um intérprete, que aspira a decifrar os signos do amor em cada encontro. Mas a decifração de signos amorosos é paradoxal: à medida que o amante aprende a decifrar os signos da amada, compreende também que o código não foi criado para ele: “Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formam sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros.” É por isso que os mesmos signos que um dia convidaram ao amor agora o conduzem até a dor do ciúme. A decifração torna-se, assim, decepção e desencanto quando os signos do ser amado excluem o amante. É dessa forma que todo o tempo investido na aprendizagem e na decifração dos signos do outro aparece agora como tempo perdido. Deleuze chamará de “contradição do amor” esta relação inversamente proporcional entre a decifração e a verossimilhança do amor: quanto mais sofisticada é a decifração dos signos da amada, mais próximo está o final do amor e a amarga decepção do ciúme. Mas é exatamente nesse momento que Deleuze muda a direção na qual os conceitos pareciam se mover para definir o ciúme não só como um afeto doloroso, mas também como um processo de descobrimento, como uma verdade que justifica a perda de tempo que implica a decifração. O ataque de ciúmes é um momento de revelação crucial no processo de aprendizagem serial do amor. Junto à dor e à perda de tempo, o ciúme oferece ao amante, pela primeira vez, o prazer de uma verdade mais forte que o próprio amor: “o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor.” O reconhecimento de um signo como mentira e o desenvolvimento dos ciúmes como exclusão e, portanto, como impossibilidade de continuar a decifração, empurram o amante a abandonar o mundo da amada e a continuar a Recherche. Assim começa a primeira repetição serial do amor como interpretação de signos (PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014, p.182-183).

E é quando tudo começa a oscilar que a vida te diz que é possível recomeçar. Ela te leva ao chão para depois te ofertar a mão para erguer e continuar. Inversão de forças é, pois, antes de tudo, a escolha da caminhada antes de uma corrida. Um novo dia está por vir. E nele o orvalho vindouro... O revoar de pássaros a te encantar em cada amanhecer. 

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