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23. Toques de realidade


Quando começou a desacreditar no que havia à volta? Fugir do que toca com sentimentos. Crer deles não saber. Conforto em não sentir. É fácil de seguir adiante. Em algum lugar, escrever para conter o que pulsa dentro do peito. Nomear o que lhe torce e segurá-lo com as mãos. Desatar um meio punhado de nós. Palavras varridas e recolhidas ao cesto. A quem se dedica vassoura atrás da porta. “Era isto. Acabou”. De tudo o que arranha, casa habitada por ninguém. Tempo escondido na imensidão de céu sem estrelas. Quando começou a esconder os sonhos? Correr de tudo o que solapava o chão. E eram tão lúcidos. Candeeiros de uma noite que vestiu o coração. Oscilar até apagar. Ir sem rumo e, às vezes, levado por indicações de outrem. Cada um dos pedaços de sonhos alheios era, de certo modo, mais um pedregulho agarrado com as mãos. De uma mão à outra a fim de sentir o peso. Da palma da mão, arremessado por entre as fissuras de desfiladeiros. Desfiladeiros cavados na alma. Acreditou não ter mais uma. Os abismos pelos quais se olha e, do escuro, olham-no de volta. Fantasiar com um tanger de realidades para escapar do que fere com limites. Não saber escrever sobre o que o felicita, pois lhe é estranho. No silêncio desse conforto, a querência de casa habitada por quem dela se apropriava antes mesmo de conhecê-la. E era tempo. Quando no chão deita, olhos fechados e o cheiro de eucalipto. Abertura de janelas e rebuscamento de ares, de outros ares, os teus ares. Cada canto dela rediz teu nome como carícia de vento ao rosto. Esse mistério de ti interligando, de ponta a ponta, o extremo oposto de tudo o que se estabelece em contrário. Recitação mútua. Outro lado de dentro. Quando o mais profundo é a extensão da própria pele, do encontro de tudo o que se sente e se quer partilhar. Os limites borrados e sublimados ao estar junto – em ser junto. Perna por cima da outra enquanto dorme, dedos entrelaçados em encaixe perfeito. Os teus toques de realidade. Agonia de abeirar o infinito em uma convicção do mundo. Passageiros. Peito que pulsa, pois é mundo e quer mundo, o teu mundo. Centros de gravidade. Aproximação pela distância. Planetas em elipse. Jamais se encontrariam não fosse por desvio e desesperança. Caminhar antes de correr. Caminhada dos que se completam por tangentes. Para sonhar. Um exílio do tempo. E ele passa com a tranquilidade dos que envelhecem. Rede de dois a balançar. O encantamento profundo por tudo o que deságua de ti. Reconhecer tuas cores em outras dimensões, em cada uma de tuas nuances. Outro lado de fora por dentro de teus olhos. Olhos que desviam ao desaguar tudo o que há em mim e que vem de você. Um elo de eternidade entre o que sinto e o que você é, o que você faz, o que te traz de tão longe e faz tão bem. Luz de candeeiro, gotas de orvalho e promessa de dias vindouros. Em cada detalhe de ti, um amanhecer. E é dia desde quando você chegou.

Algazarra de crianças em frente ao portão.
Seguida por latidos no fundo da casa.
Das janelas abertas, o vento que silva.
Cortinas balançam minha verdade rasa.
Dentro de uma rede, a linha rente do muro.
Acima dele, um traçado escuro é riscado
Pelas luzes da chuva anunciada de dias.
Chuva de mim, em ti, para todo, predicado.
Tão densos, pelos cantos, silêncios que se ouvem.
Inquietos, escutam o exílio do tempo.
Por tempo, enquanto se reconhecem no vento.
Vento sopra o que não consigo mais escutar.
Gotas frias torcem o corpo com saudade.
Silenciam o tempo e de gota em gota queimam.
À luz do candeeiro, o turvo é de claridade.
Felicidade de essências que se sublimam
Ouvi lá de ti agora, por agora, acima.
És tu chuva, orvalho e, tão certa, a minha rima.

Idade na qual nada é escondido. Galanteios sem finalidade – além de afastar o visível,  o mensurável e o que se toca. Século esquecido dos corpos, virtualizado o ponto de afastar a presença, o presente. Estar no mundo. Adoecer por não sentir, em verdade, não saber se sentir. Corpo esquecido de tudo o que pode, de tudo o que é, de toda a diferença do outro que o faz único, especial e por isso perfeito. Ser o mundo. Corpo que já não filtra a descoberta do universo contido no caos dançante de cada um, mas, por certo, anulado dentro de si até a exaustão – que se esgota e se esvai. Tudo é trivial, descarte imediado. Assentir com o tempo, por um tempo, um tempo outro. Reconhecer espaços, territórios e limites. Sentir o mundo. Vazio inominado assenhorado de tudo o que pulsa, de tudo o que faz sentir. Aquedutos de controle de uma sociedade que desaba. E nada mais parece um prédio a desabar do que um em pleno alevante. É mais fácil controlar quando prisões são projetadas sobre as subjetividades. É mais barato. Pessoas não são utensílios descartáveis, mas, atualmente, o acreditam ser, pois tudo no entorno aparentemente se tornou. E se angustiam, e se drogam, e se matam. Morrem, antes de tudo, aos poucos, socorrem-se do que é efêmero. Buraco cavado por anos ao lado de arvoredos antigos. Raízes secas expostas do que caiu, apiedou e menoscabou. E quanto mais se agarra, quanto mais é perseguida a luz, mais suas raízes são firmadas em profundezas escuras, e quebram e se afastam. É prazeroso ser quem se é. Não são requeridos gritos constantes que reportem a "sou isso ou aquilo. Por favor, aceitem!". Já foi dito há muito que a capacidade de se diferir um do outro é o único traço que nos torna seres humanos. Quando há aceitação do que se é, estranho ao outro e por isso exatamente igual a ele, as pessoas são - para o mundo - quem realmente são, independentemente de serem quem é esperado que sejam. Firmamento no mundo do seu jeito, sem os grilhões carregados por esconderijos dentro de si. Anulação de si para não magoar os outros, não os frustar e, por aceitação, também não se machucar. É com isso que se perde e se esvai. Não é preciso sair de um armário quando nunca se esteve nele. Corpo é arma. Um potencializador de vida. Não se está no mundo, um ser estranho a ele - se é o mundo. Extensão dele, de toda a intensidade que nele está, que a ele reporta. Intensidade que é você. Gladiamento de forças em que o único guerreiro é você mesmo. Guerreiro de si que se vence a todo dia em amanhecer, um amanhecer de sóis. Não se é fim, a extremidade dessa pulsão que te eleva aos céus ou derriba ao chão, mas se é caminho, meio pelo qual a vida é reescrita em ciclos. E círculos são a proporção de forças (fisicamente falando, a exemplo do movimento elíptico das galáxias, da conjectura de átomos e o próprio redizer de teus olhos). Presentação pura de que ora se está em cima, ora embaixo. E tudo muda. Estações. Pontos de parada indefinidamente entrelaçados, sobrepostos, um a um, em gradiente, em acentuação. Camadas recitadas mutuamente e em constante transformação, em movimento. E a vida é movimento, ela é cinemática, ela precisa de corpo, de matéria. Ela não é o virtual, mas o que toco, o que sinto, o que cheiro, o que faço, o que vejo. Vida é flor. Vida é sol. Vida é usina. Vida é conflito. Ela é, antes de tudo, aquilo que te atravessa de ponta a ponta. É por isso que se aprende a escrever, a falar, a pintar, a cantar e a dizer tudo aquilo que pulsa no peito. O que aperta a garganta pode ser corda amarrada, mas também um poema preso e pronto para a declamação. E vida é, antes de tudo, arte. Arte de si.

Escolher não se anular. Trânsito e volta. Rodar ao longo do dia, da semana, do mês, sabe-se lá quanto tempo, em aperreios e escolher estar do lado, ainda que por poucos minutos em um fim de semana. Saber de uma insanidade a fazer sentido ou, mesmo que não o faça, acender o candeeiro para alumiar a estrada. Não é querer "a resposta para todos os males no peito", mas saber contar com alguém, ou mesmo estar do lado, ainda que em completo silêncio, e saber que essa pessoa te renova e te concede uma pausa. Ela é uma pausa. Uma pausa de tudo o que pesa. E ela somente o é porque adveio de um mundo diferente, todo desigual, carrega dentro de si um outro caos, mas esse mesmo caos toca o teu e faz dessa relação uma constelação, uma raridade. A diferença está sempre entre duas repetições. Oscila, cai, levanta, pára, mas só é possível porque se movimenta e expande. Beleza pelo que escondes, o que há dentro de ti. Música de fundo que deságua em teu olhar. É o que se diz em silêncio, debaixo da tua pele, o que há de mais profundo em ti é o que passa a desapercebido. É ar, dele só se da conta quando se respira, quando o mundo é sentido dentro do peito ou quando falta. Fragilidade da vida. O sopro que torna cada instante aqui especial. Há mais no que não se vê do que naquilo que se mostra. E cada aspecto teu brilha, reluz algo dito por outros termos, por um outro tempo. Um esquizofrênico. A toda hora é jogo de bem me quer e mal me quer. Cada pequeno pedaço de caos que carrega brilha no escuro. Punhado de estrelas, tocha em caverna, campo a um reluzir de vagalumes.

Boa parte de mim é o que passa,
Toda sorte em ir é presságio.
Tempo tomado de fora, por fora.
É porque se deixa, solta e cai.
Parte do que sou é o que se vai.
Sou quem ando, quem agora estou.
E agora eu sou um horizonte de ti.
Céus por dentro do peito a passear.
Nuvens são tomadas por neblinas.
Sol à noite, esconder sob a cortina.
Amanhecer de um dia, por dia, a rir.
Cantos da casa redizem transformar.
O abraço teu em cura para se estar.
Em cada rumo da vida, olhos e olhar.
Olhar de soslaio, evasão e carinho.
Sonhar com o que já não se sentia.
Arar de campos desse coração.
De ti, chuva, benção e renovação.
Querer por todo, em todo, tuas fitas.
Coloridas balançando ao vento.
Sillas, meu príncipe de conquistas
E meus dias, de tudo, encantamento.

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