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24. Ensaio quase jurídico


Desde o noticiamento do estado de calamidade pública em saúde desencadeado pelo Novo Coronavírus (COVID-19), o bloqueio dos Fundos Eleitoral e Partidário para custeio de ações de combate à disseminação é suscitado em redes sociais, grupos de pesquisa, de fofoca, de "juristas" e, curiosamente, no próprio Congresso Nacional. 

Anteontem, eles foram judicialmente bloqueados (processo 1020364-92.2020.4.01.3400).

Publiquei, então, a decisão no grupo da pós-graduação em Direito Constitucional Eleitoral. 

Um professor perguntou: - Qual a opinião jurídica de vocês?

Quatro vozes apontaram, sem esmiuçamentos, que (a) houve intervenção judicial indevida no Poder Executivo (ativismo judicial), o que gera insegurança jurídica, (b) o sopesamento de princípios pela situação foi correto, (c) apoio à primeira opinião por "palminhas", (d) a decisão deveria, na verdade, partir do Poder Legislativo. 

Resolvi, então, participar. Compartilho aqui porque ninguém lá a replicou. 

Não somente os princípios que, em tese, regem a sociedade – e por consequência o jurídico – estão em questão. Até porque, a curto prazo, a ponderação entre saúde e gastos com campanha é natimorta. Qualquer justificativa em contrário é, no mínimo, desumana. A longo prazo, a discussão é mais profunda do que somente os critérios de alocação de recursos no orçamento ou mesmo de juiz "salvador da pátria" (isto serve apenas para satisfação de egos ou trampolim político – vide Lava Jato). Ela está na própria legitimidade estatal para a exação. O ideal é "suprimir a liberdade plena do ser humano individualmente" para garantir "a segurança dele coletivamente". Isso através dos serviços que presta, do que "produz" ao cliente cidadão, dos três poderes etc. Mas a atividade estatal anda de mãos dadas com a economia, seja porque sistemas de governo precisam de formas de capital, daí a tributação e o orçamento público, seja porque de muito se sabe que o ser humano é gregário, precisa se estabelecer sobre trocas com os outros e com o mundo (lógica de um organismo). Situações excepcionais cutucam no imaginário popular a pergunta: – De que serve o Estado se, quando precisamos, ele está de mãos atadas igual a nós? Ao invés de segurança (jurídica, financeira ou de vida mesmo), a atividade pública se torna esqueleto morto alevantado para assombrar uma sociedade que tem necessidades completamente distintas do seu garantidor. É como genitor que silencia a pergunta do filho com "eu sou seu pai/sua mãe e você tem que me respeitar". O Estado em si não faz mais sentido. Não estou defendendo anarquismos (até porque para acreditar nisso ou em qualquer autorregulação social, você tem que ser muito inocente ou muito sádico). Não somente juiz, promotor, servidor, parlamentar, prefeito, governador, presidente, candidato, mas todos os agentes públicos estão – como "órgãos de manifestação estatal" – sujeitos a, depois dessa crise, responder "de que serve o seu salário? De que adianta os contribuintes viverem a custa de fracionamentos do salário mínimo, em prol da independência de vocês se – na prática – não se vê qualquer resultado?". Não estou aqui querendo defender qualquer membro do atual governo, mas quando um chefe de Estado ou representante dele chama de parasitas esses agentes, ele está, bem lá no fundo, antes de desmerecer o trabalho dos que efetivamente trabalham, perguntando "de que vale mesmo o Estado para a sociedade? De que vale mesmo manter essa estrutura e continuar inseguro quanto a tudo na vida? O Estado, em algum momento tácito da história, pediu para que eu abrisse mão da minha liberdade para garantir que todo mundo fosse resguardado, o que ele fez durante quinhentos anos? Será que ele já não teve tempo de se adaptar ou, como qualquer outro humano, preferiu se esconder atrás de desculpas para continuar do mesmo jeito e o cidadão a se acostumar com isso –  porque sempre foi assim?". Isso, contudo, é discussão a longo prazo. A tendência é que o esqueleto do morto permaneça assombrando uns, sendo justificativa para práticas necropolíticas ou desacreditado de que ali foi parte de um corpo vivo (ou se esse corpo realmente existiu). Permanecendo ele e justificada a escolha do chefe do executivo na alocação de recursos do orçamento, a retirada desses recursos será uma faca de variados gumes (a) somente quem tem dinheiro fará campanha, (b) os financiadores da campanha requererão a compensação futura (o homo economicus lá de cima), (c) o rombo se voltará ao menoscabo com os serviços públicos (o rico cada vez mais rico e pobre cada vez mais pobre), (d) o patrimônio estatal, latu sensu, deve ser gerido por quem custeou ele, a população, mas como ela não se presenta ou opina diretamente, por seus representantes. Esta é, sim, matéria legislativa e não há necessidade de explicar o porquê (remanejo de verbas em fundo especial deve ser autorizado por lei ou por ela referendado, lei no sentido de manifestação dos representantes do povo quanto a disposição dele pelo chefe do executivo – art. 167, VI, Constituição Federal), (e) matéria legislativa esbarra, usualmente, na desculpa do "não depende só de mim" e, em tese, imediatamente, o Poder Executivo precisa desse dinheiro, (f) ainda que o presidente pudesse usar a medida provisória para alterar isso no orçamento, nenhuma pessoa sujeita a campanha para assumir o cargo que ocupa está desimpedida de "favores", ainda mais em um cargo tão alto como o de presidente (art. 167, § 3º, Constituição Federal), (g) omissos os defensores da democracia, do Estado e do povo, o Poder Judiciário deve, sim, se impor. Do contrário, virava bagunça e, se não morressem todos infectados, morriam de inércia, (h) se o Judiciário foi “ativo”  é porque teve gente, como dito, nos outros poderes que foi omissa e alguém peticionou para que ele decidisse sobre a questão (ele não pode silenciar e nem ignorar a atual situação (art. 5º, XXXV, Constituição Federal), (i) essas pessoas omissas são as mesmas que irão – eventualmente ou por seus partidos – utilizar os recursos desses fundos, (j) achei até elogioso (ignorado o histórico dele até porque nem sei quem é) que quem tenha ajuizado essa ação popular tenha sido um advogado que, a olhos vistos, não utilizará desses recursos para pagamento de seus honorários (ou pelo menos veja essa possibilidade reduzida) durante as eleições (arts. 1º a 8º, Lei 13.877/2019), (k) esperaria, neste caso, algo pelo Procurador-Geral da República, mas a indicação de um líder por outro engessa qualquer medida e, novamente, se aprende que alguns cargos servem para ilusoriamente dar um status polido e sofisticado a uma democracia que tem poucos resquícios práticos (art. 84, XIV, Constituição Federal). 

Hoje, a ordem foi suspensa por faltas de provas (processo 1009299-18.2020.4.01.0000).

Democracia não morre no escuro. Morre, antes - e depois de muito mendigar, sob a benção do demônio que assoma o meio-dia, ali entre as escadarias da praça em que nasceu.

A imagem é um fenômeno chamado "starling murmuration" ou "flocking behavior". Ele tem implicações belíssimas, seja para Animais Fantásticos e Onde Habitam, seja para esta tese.

"(a) todo murmúrio duvidoso que faz névoa em torno de cada um (FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Ditos e escritos, v. 4. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006)".

"(b) se é necessário o silêncio da razão para curar os monstros, basta que o silêncio permaneça alerta, e eis que a separação permanece (FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012)".

"(c) entre a Babilônia imaginada por Borges e o mundo que a modernidade outrora nos prometeu – que Jean-Paul Sartre captou na frase sublime “le choix que je suis” (“a escolha que eu sou”) – jaz o interregno no qual estamos vivendo agora: um espaço e um tempo estendidos, móveis, imateriais, sobre os quais reina o princípio da heterogenia de fins, talvez como nunca antes. Uma desordem que é nova, mas ainda assim babélica (Babel: entre a incerteza e a esperança. BAUMAN, Zygmunt; MAURO, Ezio. Rio de Janeiro: Zahar, 2016)".

O mundo está um anime distópico (o que eu adoro) e pessoas estão tão anestesiadas, para poder lidar com a intensidade de fluxos, que um prédio em construção passa por um em desabamento - e desabam junto. É tempo de ser por perspectivas. Por outras perspectivas. 

Talvez, um dia, ela seja aprofundada. Quem sabe pela sociedade. Até mais!

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