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26. Catalogação e feitiços.

Tempo cortando asas do amor (1694)

Perguntou "por que teus escritos nunca falam de amor?". Estranhei a questão. Em tudo o que faço, em tudo que penso, em tudo o que sou, lá, de raiz ou rejunte, tem amor - ou recitação dele. É que gosto de quando a divagação escorre por entre os sentidos, toca com a ponta dos dedos uma parede, sente cada uma das fendas, o reboco umedecido pelos anos de chuva no ladeado externo, o cimento assimétrico a acentuar uma curvatura sem rumo (para o tempo, está arrumada). É floreio. É paráfrase. Há em tudo uma passagem de fora, a borda de um canto, de igual forma que objetiva um contorno, chama a um outro horizonte. - Veja! Lá está... O que vai além dela. Boa parte de amar é compreender a diferença entre transcender e imanar. No fogareiro aceso, as chamas lambem a carne, mas são advertidas pelo vento. É caminho curto que vem de longe. É sempre outro, é sempre longe. Amor é o próximo e, de certo, também o distante. Outsider. Creio que a pergunta dele era "por que nunca fala de alguém?" ou "por que nunca materializa um nome?". Aí, sim, a formulação é preciosa e, aparentemente, de uma prática retórica. Ao longo da vida, vivi em abstrato. O tempo é artista. Artista de memórias. Pensieve. É mais fácil esquivar do que canalizar um excesso. Semanas de condensação de um vazio, do inominado. Todos estão disfuncionais, escapando a força de um estado de alerta constante. O corpo esgotado de ansiar pelo desconhecido. "Um pouco de possível senão eu sufoco" nunca foi tão palpável. Lembranças apertam momentos de conforto, tocam as marcas da alma como quem vê cicatriz na pele e não sabe da sua origem - ou é antiga demais até para afastar a névoa branca que guarda, de pouco a pouco, a massa acinzentada. Ela é tingida de preto, escritos de outras épocas que, não lidos, são esfumaçados para cessão de espaços. O sublime etimológico. Na última calourada em que fui, dez passos a frente, avistei pessoas "que amei". De súbito, ouvi a Don't Stop The Music seguida de Chop Suey. Memórias de viagens estão, comigo, no ir ou no voltar. Não no chegar, mas, sim, na transição. Enquanto todos dormem, o assuntamento da estrada pela janela, o que passa e o que vem. No meio, no agora, a infinitude da pele. Viajar de ônibus. No meio da noite, descer enrolado em um lençol, tentando reconhecer o lugar indistinto onde ele parou. O chão é outro e o ar também. A sensação de que nunca esteve ali e, provavelmente, nunca mais estará. Passar uma chuva na serra cearense, engurujado debaixo de um alpendre, com uma ruma de desconhecidos, sem ter para onde ir porque o lugar é inacessível. O vento gélido rachando os ossos, arrancando a cobertura de ferro. De vez em quando, uma lacraia por debaixo dos pés. É na destruição de ideais que fortalezas são erguidas. O "você não tem local de fala" é de uma imbecilidade horrenda. Quem o diz, de certeza, não sabe o que é devir. O mínimo é a mudança. Ser por estações. Parte do vocabulário bucólico nordestino, a pronúncia carregada de charme e canto, tem etimologia noutras línguas, por isso é tão múltiplo, tão cheio de ares. É lindo o sotaque de chambre, tamborete e de "a" na frente dos verbos. Eufônicos de nascença. Abraçar o que afugenta para que dele, se não destruir, impulsionar adiante. De pé, frente a retratos, memórias esquecidas. Mãos erguidas, lado a outro, proteção máxima. Herminone sempre foi um ritornelo. Não nomeio porque a palavra é um feitiço. Ela cataloga e conjura. E o fazendo, dá termo a um encanto. Com a pandemia, a certeza de que "por vezes é necessário zerar e esquecer". Esse espaço-tempo estriado. Máquina de guerra cava no desterritorializador universal o Urstaat. Não entendo o conceito de "bebendo e pegando geral porque estou feliz, se fosse para sofrer, ainda estava contigo, já superei" de certas canções. Desperdício de esforço para expor uma passagem marca, antes de uma vingança diluída pela palavra, uma dependência profunda. E o que parte somente o faz para que um pedaço do tecido da roupa que já não serve se rasgue. Com linhas de cores distintas, a costura de uma colcha de retalhos. Aconchego no cuidado com o simples. Partilhar o presente, o poder de silêncios e apreciar o que flui. Amor é, antes de belo, o equilíbrio de velejar pelo instante. Todas as interpretações da obra acima são encantadoras. A que mais gosto, contudo, é a do amor com os pés no chão graças ao tempo. Implicações outras. "E a cor é sonho".

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