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31. Serpentário

No imaginário adormecido, afetações não processadas emergem de um canto a outro. Elas são estendidas ao extremo de seus limites. O desenho é borrado para abranger o impossível. Lá, o irreal fascina o que foi barrado pelos filtros do cognoscível. O que é isso? Em boa parte do cotidiano, certos aspectos da vivência são escanteados para noutro momento serem interpretados e, a seu tempo, valorados pela memória. O descanso repousa o corpo, as fortalezas de proteção entram em manutenção. Para alevante, o que implica em movimento. Sonho ou pesadelo, é hora de acordar. 

Atravessava um babaçual. O terreno entrecortado declinava rumo a um riacho amarelado. Pelo acinzentado da terra, não avistei vivalma. Senti, não sei o porquê, que caminhava em berço de cobras. A podridão anunciada pelo ar. É possível um sonho ter cheiro? Ao longe, ossos brancos roídos pelo tempo. Depois de acordar, reaver a lembrança, percebi que quem faltava ali era eu. Apófis, Meretseger…

Filetes de luz atravessam a porta. 

Devo estar muito amorfo para ter assumido qualquer compromisso aqui. No fundo, eu sinto pena, sei lá. A piedade é gangorra de um só participante. Assentado de um lado, o outro sobe. Sem ninguém ali, você até tenta fingir que é possível brincar, e corre para fazer contrapeso… Até que se cansa. E se vai. E acho que estou criando coragem para ir. São necessárias pausas na vida. E essa, de mim, já perdura demais.

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Lenda baleada pela segunda-feira Apossado de qualquer trocado para ir à locadora, sempre via um ou outro pôster da franquia Halloween . Ouvi toda a discografia da banda homônima - que por sinal emocionou demais na adolescência - antes de assistir aos filmes. E foi uma boa escolha. Terminei hoje à tarde os dois primeiros. No fundo, excluído o desejo homicida, eu sou o protagonista. Amo quando passo horas e horas a observar o mundo, o movimento das pessoas, o ritmo do que se leva e do que é levado. Em silêncio, diluir as inquietações pelo revés do olhar. As intensidades que colorem a mesmice da vida desembocando como cachoeira para dentro de mim. Desfocar o significado do que se vê. Apenas sentir. Ou, quem sabe, de canto a outro, imergir no que é desintegrado. No que está desintegrando. Ruínas de histórias. Um novo enredo que é levantado. O jeito com que ele apagou toda a subjetividade para, aguardando em hiatos, lançar o que restou pelas sombras. Beber da imortalidade. Anunciar a lucide

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