Pular para o conteúdo principal

29. Notas de celular

Montanhas russas e eternos retornos (2021)

Todo dia eu me arrependo de algo. Desde pequeno carrego uma angustia no peito. Um dia, achei que ela seria apagada com um amor. Encontrei "um amor", mas a única coisa que se apagou foi a minha subjetividade. Apaguei muitos traços de mim para, no fim, ser apagado de vez, agora, da vida alheia. Vida que já não era mais minha. Acho que ser gay destrói a gente desde cedo. Quando a gente aprende a confiar, uma parte do mundo desaba. E se afunda só. As vezes, eu até tento chorar, mas acho que não consigo. Aos poucos, tudo aquilo que me fazia ser menos infeliz, por desgosto alheio, acaba sendo atravessado junto. Não gosto mais de assistir HP, não gosto mais de caminhar, de andar por horas e horas sozinho. Toda vez que chego perto de alguém, ouço reclamações, nunca soluções, somente problemas. Isso cansa. Tento ser engraçado, mudar de assunto, mas Deus sabe o quanto me dói sentir o outro e não ser sentido, querer espaço. Gosto de pessoas autossuficientes. E ao longo do tempo aprendi a ser também. Não sei onde fui perdendo o encanto de mistérios, de descobrimentos. Hoje, ao que parece, tudo ao meu redor me frustra, me arranha, me deixa ainda mais distanciado de tudo. É um mecanismo de proteção que, depois de apontado, acabei percebendo em mim o tempo todo. Não gosto dele, mas as vezes acho que é a última porta fechada pela mente antes de desabar. E não desabo de triste, mas de cansado. É ruim passar a vida com pessoas às costas. Da escola à família, do trabalho aos amigos. Ando tão sem rumo. Não como o adolescente que ainda tinha sonhos, planos, mas de ficar pensando se isso vale mesmo a pena. Cada esforço, cada dia que levanto sem coragem, ansioso demais para voltar a dormir, pensativo demais para concluir qualquer coisa. E isso é ser adulto, eu sei. O Nietzsche insistia em "parir estrelas brilhantes". Planetas esgotados, de massa condensada, que cansada dela mesma, contraiu e explodiu. No lugar que costumava ficar, ela já não existe, mas, dia após dia, atravessa as eras para iluminar a noite. Queria que as pessoas começassem a usar essa escuridão ao redor para, em contraste, reforçar ainda mais aquele lampião que insiste em permanecer aceso. De todos os cacos, um kintsuji


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

39. O Vulto

Lenda baleada pela segunda-feira Apossado de qualquer trocado para ir à locadora, sempre via um ou outro pôster da franquia Halloween . Ouvi toda a discografia da banda homônima - que por sinal emocionou demais na adolescência - antes de assistir aos filmes. E foi uma boa escolha. Terminei hoje à tarde os dois primeiros. No fundo, excluído o desejo homicida, eu sou o protagonista. Amo quando passo horas e horas a observar o mundo, o movimento das pessoas, o ritmo do que se leva e do que é levado. Em silêncio, diluir as inquietações pelo revés do olhar. As intensidades que colorem a mesmice da vida desembocando como cachoeira para dentro de mim. Desfocar o significado do que se vê. Apenas sentir. Ou, quem sabe, de canto a outro, imergir no que é desintegrado. No que está desintegrando. Ruínas de histórias. Um novo enredo que é levantado. O jeito com que ele apagou toda a subjetividade para, aguardando em hiatos, lançar o que restou pelas sombras. Beber da imortalidade. Anunciar a lucide

35. Constelação castanha

Caminhos da roça Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Tudo o que existe, existe em Deus. Essência é potência. Deus é a potência absolutamente infinita.  Com Deus, tudo é permitido [Benedictus de Spinoza]. Ele é fundo imanente por meio do qual as estruturas transcendentes se estabelecem em graus, gradientes e gradações. Ele é o horizonte celeste que é atravessado por um por do sol. A folha em branco onde se escrevem as histórias. As diferentes pressões que, confrontadas ou decompostas, ressoam como o vento. Elas são o vento. Ventanias que, de súbito, memoram situações.  Não sei bem que dia era aquele. Dentro do ônibus, indo para a faculdade. Meio vazio, igual ao coração. Ziguezagueava pelas ruas mal iluminadas da Nova Brasília. No fone de ouvido, uma canção que entrecortava o peito. Planet Caravan [Black Sabbath]. Com vontade de me matar. Não de tristeza. Ninguém se mata de tristeza. As pessoas já estão mortas por dentro quando decidem antecipar a única certeza que se tem na vida.

36. Encouraçado

Rio Longá em Boqueirão (PI) Esse retrato ganhou um concurso de fotografias. Está em na agenda (2023) de uma instituição pública piauiense. As paisagens bucólicas são encantadoras. Quando o cansaço da bicicleta aperta, elas revigoram a passagem entre José de Freitas (PI) e Cabeceiras (PI). A vegetação esverdeada pela chuva, as nuvens esparsas que de quando em quando encobrem o sol. Os corpos d'água que se vê pelo caminho. É raridade, é pureza. Eu amo o interior do Piauí. Há uma semana comecei o meu segundo curso técnico. Quando ingressei no instituto federal, a afeição pela matemática projetou duas opções: informática ou contabilidade. Um pela manhã; o outro à tarde. Uma exata com começo, meio e resultado; a outra humana: inconstância, projeções e perspectivas. Foram quase cinco anos enfrentando o sol do meio-dia, ouvindo a seleção de melhores músicas do Roberto Carlos nas linhas 104 (Santa Maria Shopping) ou 201 (Santa Maria Centenário). Ouvir  Amada Amante na trilha sonora de Tapa