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32. Madrugada


O frio toca a pele por pequenos calafrios. Morcegos a vaguear entre as árvores, iluminados de quando em quando pela luz de poste aceso. O som de carros que trafegam à distância. Tudo está quieto. Eco de silêncios. Ainda é noite. E faz um tempo que é noite aqui dentro. Acho que estou deprimido de novo. E faz um tempo que deixei que isso fosse um impedimento. Apagar, pouco a pouco, qualquer traço de afetações, do riso ao toque, do medo ao cheiro de flor. Faz um tempo que me perdi. Não sei o que faço ou por que o faço. Há algo que se desprendeu daqui. Não falo de alguém, mas do que sou, do que era, fui ou almejei um dia ser. Um punhado de palavras que segurei e escorregaram entre os dedos, antes de irem com o vento, ou vieram dunas, ou foram ao chão e choveu. Era lama. Tem lama em meus sapatos e eles entram em casa. Só queria saber chorar, mas nem a isso me presto. Há algo de estranho na hora que passa pelo relógio e não me leva. Como os ponteiros que são levados, é a vida que leva. Acho que enfim sentei em um hipopótamo e, puxado pela gola, avistei os séculos atrovejados. "E se faço parte do desfile desses pássaros, o que é que eu faço agora além de cantar?".

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39. O Vulto

Lenda baleada pela segunda-feira Apossado de qualquer trocado para ir à locadora, sempre via um ou outro pôster da franquia Halloween . Ouvi toda a discografia da banda homônima - que por sinal emocionou demais na adolescência - antes de assistir aos filmes. E foi uma boa escolha. Terminei hoje à tarde os dois primeiros. No fundo, excluído o desejo homicida, eu sou o protagonista. Amo quando passo horas e horas a observar o mundo, o movimento das pessoas, o ritmo do que se leva e do que é levado. Em silêncio, diluir as inquietações pelo revés do olhar. As intensidades que colorem a mesmice da vida desembocando como cachoeira para dentro de mim. Desfocar o significado do que se vê. Apenas sentir. Ou, quem sabe, de canto a outro, imergir no que é desintegrado. No que está desintegrando. Ruínas de histórias. Um novo enredo que é levantado. O jeito com que ele apagou toda a subjetividade para, aguardando em hiatos, lançar o que restou pelas sombras. Beber da imortalidade. Anunciar a lucide

35. Constelação castanha

Caminhos da roça Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Tudo o que existe, existe em Deus. Essência é potência. Deus é a potência absolutamente infinita.  Com Deus, tudo é permitido [Benedictus de Spinoza]. Ele é fundo imanente por meio do qual as estruturas transcendentes se estabelecem em graus, gradientes e gradações. Ele é o horizonte celeste que é atravessado por um por do sol. A folha em branco onde se escrevem as histórias. As diferentes pressões que, confrontadas ou decompostas, ressoam como o vento. Elas são o vento. Ventanias que, de súbito, memoram situações.  Não sei bem que dia era aquele. Dentro do ônibus, indo para a faculdade. Meio vazio, igual ao coração. Ziguezagueava pelas ruas mal iluminadas da Nova Brasília. No fone de ouvido, uma canção que entrecortava o peito. Planet Caravan [Black Sabbath]. Com vontade de me matar. Não de tristeza. Ninguém se mata de tristeza. As pessoas já estão mortas por dentro quando decidem antecipar a única certeza que se tem na vida.

36. Encouraçado

Rio Longá em Boqueirão (PI) Esse retrato ganhou um concurso de fotografias. Está em na agenda (2023) de uma instituição pública piauiense. As paisagens bucólicas são encantadoras. Quando o cansaço da bicicleta aperta, elas revigoram a passagem entre José de Freitas (PI) e Cabeceiras (PI). A vegetação esverdeada pela chuva, as nuvens esparsas que de quando em quando encobrem o sol. Os corpos d'água que se vê pelo caminho. É raridade, é pureza. Eu amo o interior do Piauí. Há uma semana comecei o meu segundo curso técnico. Quando ingressei no instituto federal, a afeição pela matemática projetou duas opções: informática ou contabilidade. Um pela manhã; o outro à tarde. Uma exata com começo, meio e resultado; a outra humana: inconstância, projeções e perspectivas. Foram quase cinco anos enfrentando o sol do meio-dia, ouvindo a seleção de melhores músicas do Roberto Carlos nas linhas 104 (Santa Maria Shopping) ou 201 (Santa Maria Centenário). Ouvir  Amada Amante na trilha sonora de Tapa