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33. Inconclusivo

Couroupita guianensis ("abricó-de-macaco")

Os fones de ouvido acompanham o pedalar de bicicleta pela cidade. As ruas vazias. Ladeadas de casas e às vezes de mato. Os filetes de sol entre os galhos de unha-de-gato. Subiam pelos muros em busca de imensidão. O caminhão fazendo o chão vibrar, junto do vento quente que balançava quase tudo ao redor quando, de súbito, me ultrapassava. Começava a ficar escuro. Sobre o espelho d’água do riacho, os pássaros em um movimento rítmico. No céu, eles se separavam do grupo como que repelidos um do outro, se alinhavam no sobrevoo e, novamente juntos, coexistiam em uma dança hipnótica. O ciclo era reiniciado enquanto eles dominavam toda a extensão do espaço. Era gracioso (flocking behavior). Licença para adentrar em açude particular e, com o único anzol, pescar o que interessa (fishing expedition). Dragar um rio para que, do fundo dele, seja extraído tudo o que não interessa (data dredging). Ambas técnicas válidas, mas a interpretação do que é feito causa, em cada contexto, uma anulação distinta. Já se anulou por alguém? Cansei da posição de guia e de gerenciamento de riscos. As estratégias romanas nunca deram certo de qualquer forma. Uma cultura foi reescrita sobre a outra, afunilando cada vez mais a perspectiva do múltiplo. As estacas que sustentam o mundo. 

No luar, caminhando sobre o paredão da barragem, a canoa no meio do lago lançava sinais com uma lanterna. A coruja que agourava o terreno baldio era tão linda. Ela já estava ali.

Sempre que possível, evito nomear a quem me refiro. É sempre uma tangente, abstrata o suficiente para não indicar, conceitualizada o suficiente para não exprimir uma subsunção. Mas isso foi sobre mim. O escrito deixa de ser meu e passa a ser dos outros. De um terceiro. De um terceiro excluído. A ponte para a ilha dos sonhos. Erguida com as pedras que são atiradas em ti pela vida. Hiato entre um pensamento e o seguinte para estabelecer uma ordenação, ainda que inexpressiva, quem sabe até uma coordenação de ideias. Resolvi escrever sobre mim. Não que os antecedentes ignorassem o enunciador: eles eram projetados ao indistinto. Tinta na paleta de cores do céu em um determinado ocaso. Por elas me borrei – e fui também borrado. Enquanto se é levado pela bicicleta, o suor evaporado pelo vento frio toca a face de manhã cedo. A incapacidade de esperar. É um tanto ecológico, eles dizem. É difícil não carregar as coisas por reticências... Elas nunca parecem ter um final.

A tendência de uma rede social me fez lembrar de certas situações pelas quais passei. Sempre estive muito atrelado a escrita, à leitura e a introspecção. Não é à toa que minha rede social preferida é o Twitter. Consigo sobreviver sem todas as outras. Já ele... Um vício incontrolável. Não sei se já comentei aqui, mas, há um tempo, depois de ter sido encaminhado pelo gastrologista (crises absurdas de dor de barriga, parecidas com a de agulhas no estômago, que me tiravam o ar, apertavam todo o meu tronco e me paralisavam) e pela dentista (briquismo que me fez gastar o dinheiro que não tinha para fazer canal nos dentes frontais), fui ao psiquiatra. Lá, depois de uma conversa sincera, ela projetou um laudo de transtorno de personalidade esquizoide. Não é esquizofrênico, é esquizoide. Explicou muito sobre mim e sobre situações pelas quais me sentia culpado por, no fundo, não sentir ou realmente não me importar. A maneira pela qual expresso sentimentos ou sensações é através das palavras que se espalham entre os meus dedos e me fazem redesenhar um sorriso, um medo, um abraço, uma dor, um prazer, uma insegurança. Eu literalmente sinto em abstrato. Há muito dentro de mim, mas esse muito não é redobrado sobre a pele, sobre o que sai da minha boca, mas pelo que consigo traduzir em textos, na vontade que tenho de aproximar quem, de longe me vê, mas consegue traduzir. E eu sou bom em traduções. Uma língua diferente cria outra personagem. Dividir a alma em dois. Ou em mais. Não como uma horcrux. É mais como um coração de pedra. Sim, a arte subjetiva detalhada a quase exaustão em às Crônicas do Matador do Rei, coleção de livros favorita. Viu? Sempre fugindo. As derivas são uma atração particular. Da beirada de um penhasco a imaginar o salto da beirada do mundo, caindo no infinito do universo e percebendo o porquê do movimento de afastamento das galáxias. Elas querem conquistar territórios, afastando-se uma das outras e, ao mesmo tempo, reciprocamente consideradas, criar a vastidão que corre tudo o que é possível. 

Deitei para dormir após o almoço. Ao acordar, senti o rosto amassado, a boca seca e o braço, por baixo do travesseiro, completamente dormente. Fazia tempo que não dormia assim. Ainda atordoado do sono profundo, acostumava os olhos com o quarto escuro e a cor da parede à frente. Senti que às costas algo fazia peso na cama. Pensei que era minha mãe. Ela costumeiramente sentava ali e me chamava para levantar. Lembrei que estava sozinho em casa. Todos haviam viajado. Coração acelerou, fechei os olhos e comecei a transpirar. Temi pelo pior. De medo, acho que desmaiei. Do quintal da antiga casa, sempre avistava uma silhueta sombria na porta dos fundos. Ela me observava em silêncio enquanto eu me afogava no lamaçal que rodeava o jirau. Tentava gritar, mas – coisas de sonho – a minha voz não saia. Um dos pesadelos que quando me acontecia, me fazia acordar sem ar e, quase sempre, ir certeiro à igreja. Quando ouço “sinking in the quicksand of my thoughts” e lembro do episódio, o verso pesa com mais força e redescubro o poder de um percepto.

Cidades interioranas são repletas de histórias. Pela falta de oportunidades e também de agonias comuns, elas aquecem o coração dos moradores em uma roda de conversa. Trabalhei em uma casa antiga. Sempre que alguém ficava sozinho, silhuetas passavam pelas portas abertas, enquanto se estava de cabeça baixa a folhear algum documento, da mesma forma que os servidores indo de uma sala a outra de dia. Luzes piscavam. A sensação de estar constantemente sendo observado. Medo de que o monitor do computador apague e, às costas, uma silhueta se materialize no reflexo da tela. O bebedouro que, do nada, parecia saciar alguém que não estava ali. Todos somos corajosos, ainda que a sós, redobramos sobre o medo uma explicação lógica e nos confortamos com isso. Digo isso porque era a dilatação no teto que causava o barulho e não outro tipo de fenômeno. Um dia, reunidos, começamos a conversar e falar dos acontecimentos que percebíamos, mas estávamos receosos demais para contar em voz alta. Ninguém queria ficar lá. E com razão. Após visitar a casa, um sensitivo, de passagem pelo Piauí, confessou que não conseguia olhar para o canto da sala em que uma mulher ficava lhe encarando. Sem saber de nossas conversas ou da história que só fomos descobrir tempos depois, ele talvez falava da dona da casa que havia tirado a própria vida ali. 

Falando em irreais e de subconscientes borrados, sonhei que a gente sentava um de frente ao outro numa rede – e ria. Teus flertes, floreios esquivos. Acordei tão feliz. 

São quase duas da manhã. Gosto da sensação que o vento frio faz ao tocar o corpo. As gotículas gélidas começam a me cercar enquanto deito no chão. É chuva. É noite.

Post scriptum: a primeira vez que vi um abricó-de-macaco foi indo para um curso de informática em que passava pelos arreadores do Palácio de Karnak. O fundo do prédio é amurado por essas árvores. Elas são lindas. Um sonho, uma dúvida. É uma nota mental interna. Parabéns. Até mais.

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