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34. Das alegrias que o tempo traz

Estação de trem abandonada em Boqueirão do Piauí (PI). 

Quando vi os trilhos cerrados, entendi o que Espinoza disse sobre perceptos. Um conjunto de sensações que extrapolam aquele que sente, o que se percebe. Todas as ruas por onde caminhei, todas as esquinas em que, ao me virar, a alma se tornou outra. Cada rachadura contando uma história, cada fresta carcomida pelo tempo como um portal de outras vidas, as vidas que passaram por ali. Há tantos céus no silêncio dessa foto. O que é tangível transcendendo em um fundo infinito de imanência. A nuvem que é pelo vento levada. E é, em si, de sempre, o movimento do mundo. Conheci essa estação quando fui conhecer a cidade em que meu esposo nasceu e se criou. Gostei de lá. Como toda cidade interiorana daqui, ela é cheia de olhares tristonhos, de semblantes pesarosos que sonham com dias melhores, com oportunidades melhores. Ir a outro lugar. Acho que isso me encantou em José de Freitas (PI). 

Parte materna é do Maranhão; a paterna, da Paraíba. Encontrados no Piauí, em um baile de reggae na Ladeira do Urubu. A gente nunca sabe a história de como os nossos ascendente se conheceram. É um pedaço de conto aqui, outro dali e, a cada vez que se ouve, uma cena é adicionada nesse enredo. Apenas quando envelhecemos é que começamos a entender certas nuances nas relações. Essa semana estive assistindo àquela série Entre Tapas e Beijos e lendo os cursos do Deleuze sobre Espinosa. A tristeza é um projeto cultural. É a vontade de existir que, de um afeto a outro, aflora uma dança nova com a vida. Relacionamentos começam dessa forma. Um afecto aqui, um concepto acolá. Eles se esgotam e, até que se perceba o exaurimento, os conflitos entre o que um quer e o outro repudia, as irritações com os gostos alheios. De traço por traço, as palavras afiadas, os silêncios que causam rachaduras e a confiança é como um espelho. Estações de trem: gente que chega, gente que vai. 

Não sei se por causa do efeito sanfona, da criação evangélica ou do estigma de ser viado: sempre retraí o corpo. Não somente cobrir de roupa, mas negar a existência dele até dissipar em uma abstração. Convivendo com os meus dois filhos pequenos (Loki e Tobias), aprendi que o corpo é uma zona de combate. As forças com vetores distintos e que, mesmo somados em conjunto fechado, sempre têm valores diferentes de zero. Situações e situações. Cada perspectiva acerca delas molda a nossa subjetividade. O fim de um relacionamento, o início de um trabalho, a continuidade da vida em cada detalhe. Paz é a última razão do sujeito. Um descanso de todas as intensidades que o atravessam. Uma rede em alpendre, uma caminhada ao fim de tarde, sentar na calçada. Autocuidado é maravilhoso. "I light all the candles, cut flowers for all my rooms". Prudência. Ouvi dela em Deleuze e dos Professores em princípios contábeis. Filtros: saber para poder se equilibrar. É uma máxima foucaultiana. Ele assentou na linha da subjetividade e, aprendendo a viver, não a finalizou. E é isso que é tão belo na poesia dele. O equilíbrio em manejar uma pausa, um hiato, um pouco de paz, uma vida no interior. O devir bucólico, devir outro.

A passagem e a chegada.
Entrementes, ir.
Uma nova estrada.
Dos pássaros, canto.
Nascer do sol, a revoada.

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